Por Fernando Horta: A Estrada do Desespero

Publicado em: 16/07/2017

Do BLOGFERNANDO – Em 2008 ocorreu a maior crise da história do capitalismo. Só para a economia norte-americana estima-se um prejuízo de vinte e dois trilhões de dólares e mais de três milhões de empregos[1]. O prejuízo no mundo todo é ainda difícil de calcular mas estima-se que seja mais quinze trilhões de dólares[2]. Os estudos científicos falam numa queda de mais de 50% do comércio global[3]. Este efeito foi ainda piorado pela crise do Euro em 2010[4], na desaceleração do consumo chinês[5] e pelo fim o super ciclo das commodities em 2013[6]. Para se ter uma ideia, os principais parceiros comerciais brasileiros são a China, a União Europeia e os EUA (nesta ordem[7]) e todos reduziram seus consumos.

Se o prejuízo material da crise de 2008 supera o da crise de 1929[8], a percepção social não chegou a tanto. Em 29, houve caos social, pânico econômico, suicídios diversos e a geração de uma percepção de que o capitalismo estava errado em essência. Duas ideologias opostas passaram a atacar o capitalismo internacional de forma muito clara: o nazi-fascismo e o socialismo soviético. A força de ambos os discursos vinha da própria realidade econômica, a URSS simplesmente não sofreu abalo algum com os efeitos de 29 e seguiu crescendo a taxas bem altas e a Alemanha, após ter sua economia destroçada entre 29 e 33, conseguiu com Hitler atingir o pleno emprego e retomar o crescimento. As duas fórmulas atacavam a percepção do individualismo e do capitalismo transnacional, mas davam soluções diferentes. Enquanto o modelo nazifascista trabalhava com a ideia central de “pátria” e reafirmava a necessidade de um “capitalismo nacional” o modelo soviético propunha a negação tanto da ideia de nação quando da de capitalismo.

Os resultados de 29 são claros. O capitalismo precisou de uma guerra mundial para se estabelecer e sobreviver, mas não saiu ileso deste processo. O liberalismo do final do século XIX, que havia catapultado o capitalismo à esfera mundial precisou ceder terreno a uma forma menos agressiva de capitalismo, que tinha nas garantias ao trabalho, no controle dos mercados pelo Estado e na submissão do financismo aos interesses de governo suas principais características. Não é, portanto, à toa que as legislações trabalhistas são pensadas neste período, que o welfare state se estabelece e que as principais leis de controle dos mercados são aprovadas nos EUA[9].

Após o final da segunda guerra (1945), com as negociações para a criação do chamado “Sistema de Bretton-Woods” (ONU, FMI, Banco Mundial) ocorre uma estabilização institucional do mundo. O Plano Marshall joga aqui papel essencial ao “pacificar” as economias capitalistas forçando que elas mantivessem seus mercados abertos e também isolar os países socialistas. Até os anos 70, a Guerra Fria se encarregou (com investimentos imensos do Estado norte-americano em propaganda dentro e fora dos EUA) de conduzir os “corações e as mentes” dos “homens livres” a odiarem qualquer coisa minimamente diferente de um individualismo meritocrático[10]. Criaram-se até ideias – nada científicas – de que o homem era um competidor por natureza e que o capitalismo seria algo “natural”[11], uma espécie de “evolução” da espécie humana.

Arredias que eram as sociedades socialistas, passaram a fazer uma sombra nada agradável aos olhos capitalistas. A URSS e o efeito Sputnik[12] mostravam que a economia crescia e a ciência se desenvolvia sem nenhuma necessidade do capitalismo. A China mostrava que a inclusão de uma população bilionária era levada a cabo através planificações, coisa que o capitalismo não teria como fazer por uma questão de escala[13]. Cuba, isolada e agredida diuturnamente, elevava o nível educacional[14] e social[15] de seus cidadãos a um patamar que nenhum país capitalista da América Central jamais conseguiu, mesmo alguns recebendo apoio e ajuda financeira norte-americana.

A luta ideológica foi se tornando cada vez mais acirrada. Não é por acaso que Ronald Reagan era um ator, alguém com uma melhor capacidade de transmitir sensações, apelos, e mexer com o ideário da população norte-americana. É dele o reavivar da Guerra Fria e a colocação em prática do neoliberalismo. Com o fim da URSS, o capitalismo tinha novamente (como no século XIX) as mãos livres para aumentar o nível de exploração mundial e concentração de renda no mundo. O primeiro passo seria destruir toda e qualquer forma de sobrevida de sistemas rivais ao capitalismo. A prisão e julgamento de Slobodan Milosevic cumpre este papel simbólico juntamente com os ataques à Saddam Hussein.

Entre 1991 e 2008, o mundo assiste à escalada da globalização, seus efeitos bons e deletérios. A integração dos “mercados”, os ataques às barreiras nacionais, a consolidação dos meios de comunicação mundiais e a reorganização do mundo, agora sem a URSS. A China acaba por ser escolhida pelos EUA como principal antagonista, embora não única, e a hegemonia norte-americana se torna tão evidente que atrai contra si a bestialidade humana. O terrorismo não escolhe seus alvos de forma irracional e tampouco tem “inveja” da “democracia e prosperidade” do ocidente[16]. Revolta-se com sua presença. Com toda a corrida armamentista da Guerra Fria, ainda a luta se dava no campo do ideológico. Após a queda do Muro de Berlim, o poder nu e cru do dinheiro e das armas julga não precisar mais gastar para convencer ninguém. Não é à toa o orgulho com que a intelectualidade ocidental escrevia teses como “o fim da história”[17], “e o capitalismo triunfou” entre outros.

A crise de 2008 foi um balde de água fria nos grandes detentores de capital pelo afora. Não apenas viram seus capitais sumirem como vivenciaram novamente o desespero de 1929. Uma nova onda de livros foi lançada, livros que falavam sobre o “pós-capitalismo”[18], pregando o fim do capitalismo como conhecemos[19]. Inúmeros analistas vociferaram que o neoliberalismo tinha sido ferido de morte e que um novo sistema era necessário. Antigas críticas afloraram, como bem mostra o best-seller “O capital no século XX” de Piketty[20]. E a paranoia anti-comunista uma vez mais precisou ser colocada na rua.

Inúmeros think tanks conservadores[21], no mundo todo, passaram a recrutar teóricos, escrever artigos, pagar propaganda, comprar grupelhos de jovens alucinados e tudo isto com objetivo de amedrontar o “mundo ocidental” do “cidadão de bem” a respeito do futuro. Este futuro que se ameaçava plural, inclusivo e sem preconceitos precisava ser evitado. Feminismo, direitos de comunidades LGBT, diminuição das desigualdades, migrações, diminuição do consumo, controle da produção e do envenenamento do planeta, respeito à diversidade e etc. Todas estas pautas foram ligadas ao antigo “medo do comunismo” reativando velhas chaves como a “liberdade” e o “individualismo”. Palavras que não tem sentido algum por si mesmas e que são usadas como santuários de onde os indivíduos destilam preconceitos, violência e sectarismo. Era preciso defender o “meu mundo”, o “meu país”. Buscar a nostalgia dos tempos em que os bandidos eram vermelhos e falavam russo.

Buscaram-se teorias e autores que tinham sido superados ou simplesmente deixados de lado no início do século XX. Limparam suas biografias, apagaram as partes feias de seus livros e passaram a vender como novos paladinos da liberdade. A facilidade das redes permitia uma comunicação unidirecional sem contraponto. Blogs, vídeos, jornalistas conservadores passaram a receber dinheiro para propagarem velhos pensamentos com cara de novidade. O mais importante era não permitir o debate. Interditar a racionalidade. Reescrever a História. Afinal, se o século XX tinha criado todo um grupo de brilhantes intelectuais que eclipsaram estas velhas ideias, é preciso que ninguém queira lê-las, seja porque são feministas, porque são “comunistas” ou porque Deus não quer[22].

É verdade que o Brasil foi pego no meio desta onda global. É possível se ver o mesmo discurso pobre e mal-acabado que se fala em inglês numa reunião de “qualquer coisa pela liberdade”, nos EUA, sendo repetido – de forma idêntica – por um menino de 17 a 22 anos no Brasil, que sequer o mesmo local social ocupa daquele original que proferiu o discurso. Até usam neologismos replicando o inglês e os mesmo péssimos autores. Ayn Rand não dá uma perna da capacidade intelectual do nosso Roberto Campos. Ambos conservadores, mas quem paga a conta do curso, manda lembrar de Rand e não de algum tupiniquim… Os jovens que compram este discurso, contudo, já foram adestrados para perderem seu senso crítico.

Crítica, coletividade, identidade, igualdade, humanidade são todas coisas de “comunista”. E segue-se um “kkkkkkk” que simboliza a interdição do contraponto. O mesmo padrão é usado nos EUA e levou o presidente Barack Obama a dizer abertamente em um discurso que “não era legal você falar sobre o que não entende”, tentando atacar o imenso anti-racionalismo que também lá impera[23]. Marx dizia que o capital não tinha pátria. Que os grupos da alta burguesia mundial tinham mais em comum por serem burguesia do que qualquer noção de nacionalismo poderia vir a trazer. Eis a chave. A geopolítica que deve balizar nossos discursos no Brasil não deve colocar a culpa no país A ou B, mas reconhecer este movimento maior de pânico que os capitalistas estão vivenciando quando são deparados com 2008.

O país que mais cresce no mundo é socialista[24]. O melhor sistema de educação da América é socialista. O melhor sistema de saúde do continente é socialista. Os países que mais diminuíram a desigualdade social econômica na América são bolivarianos[25]. O melhor presidente da história do Brasil é petista. O melhor candidato à presidência dos EUA se dizia abertamente socialista[26]. Em contrapartida, o neoliberalismo só entrega concentração de renda[27] e pobreza[28], o capitalismo segue destruindo o planeta[29], nos EUA cai o nível de instrução[30] e aumenta a pobreza[31]. No Japão o hiperdesenvolvimento industrial gera recessão[32] e a falta de seguridade social um número alarmante de suicídios[33]. Na Coréia do Sul idosas se prostituem para sobreviver depois de serem abandonadas no final da vida produtiva[34] e a Europa é atacada por todos os lados para desmontar seus sistemas de seguridade[35].

Adivinha qual dos dois exemplos a classe média brasileira resolveu abraçar para “sair da crise”?



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