Quem tem o Direito a ser corrupto?

Publicado em: 05/12/2017

Por Bethânia Suano

Advogada militante de direitos humanos e
doutoranda em “Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI”,
pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Tenho mesmo evitado a fadiga que é fazer um post no meu facebook, onde não tenho mais que 800 amigxs virtuais, depois discutir qualquer coisa e não mudar nada em termos práticos, da vida cotidiana cheia de desigualdades em que tropeçamos dia após dia. Entretanto, aproveito o ensejo da vinda do juiz Moro a Coimbra ter repercutido até nas redes sociais e nas mídias velhas de guerra tradicionalistas ou não, para tecer umas linhas sobre o que tenho refletido nesta seara tão caótica que tem sido a política nacional brasileira.

Teoricamente no Brasil as instituições são divididas em três poderes independentes e complementares, cujo funcionamento garantiria tal independência e a tão almeja estabilidade democrática. Temos problemas de ordem de falta de honestidade (podem ser chamados de corrupção, mas eu chamaria de tradição institucional mesmo) e foi para dizer quem pode ser desonesto no nosso país que insurgiram desde fim de 2014 (reeleição da Presidenta Dilma Rousseff) homens brancos letrados de toga ou sem, sempre representantes da Lei e do Direito, dentre os quais Moro foi o de maior destaque no Judiciário (chora Gilmar!), como se a política nacional fosse um desfile de escola de samba (nada compra o Carnaval, adoro festa e alegorias inteligentes).

Advogados contratados por todos os espectros políticos, de Lula a Temer (não direi aqui sobre a distância e proximidade destes dois na minha régua político-ideológica), alertaram constantemente (em momentos alternados claro, conforme a necessidade do cliente bola da vez) que muitos princípios do Direito estavam sendo quebrados seletivamente: legalidade, devido processo legal, presunção da inocência, ônus da prova e até intimidade dos acusados, dentre outros parâmetros legais ordinários ou constitucionais.

Concordo com um conhecido psdbista que uma vez disse algo como que a “ordem legal” rompeu-se dramaticamente a partir da condução coercitiva do Lula sem justificativa legal (não existe nenhuma lei que autorize aquele circo armado em Congonhas), acrescento que o juiz Moro estava no comando e nós brasileirxs ainda hoje estamos tentando juntar os cacos do caos institucional instalado, mesmo sem compreendermos com clareza. Há muitos outros episódios forjados por Moro que podem ser citados, como a divulgação da escuta do telefonema entre Dilma e Lula às vésperas da nomeação deste para a casa civil, etc. Quando é que aceitamos com naturalidade um juiz conduzir um processo criminal como um autor na Globo conduz uma novela das 8?

Cabe aqui uma pequena digressão para além do Moro em tela, apenas para frisar que, então, no insólito 2015, veio a coroação do que chamamos rompimento da ordem legal ou mesmo de quebra do empolado “Estado Democrático de Direito” com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Atenção que não pretendo aqui defender Dilma (já o fiz, faria novamente em outros textos e contextos, mesmo que ela própria declare Renan Calheiros alguém de confiança). O impeachment ocorreu apesar da legalidade e não com a legalidade – claramente não houve crime de responsabilidade, a ponto de continuarem sendo tomados pelo Governo Temer os mesmos “procedimentos de gestão orçamentária” (chamemos assim as pedaladas e decretos suplementares).

Tudo isto para exemplificar que não estamos acabando com a corrupção no Brasil, estamos apenas redefinindo quem tem Direito a ser corrupto. Pois pensem bem, como um juiz de 1ª instância, que devia estar entupido de processos na sua vara, viaja tanto para o exterior para fazer palestras, tem tempo para dar tantas entrevistas na mídia? Se o leitor conhece um juíz ou juíza da sua Comarca, pergunte como funciona? Mesmo que este ou esta tenha excelentes escreventes, auxiliares, estagiárixs, precisa, minimamente, gerir que escreve sentenças, despachos e ainda tem que estar presente em audiências.
Voltando a Coimbra, lamento muitíssimo, ainda que não me surpreenda na mesma escala, ver a Faculdade de Direito, da tão renomada Universidade de Coimbra, sediar um evento pago (e caríssimo), com oradores majoritariamente homens e dentre os quais ter Sergio Moro, para falar sobre “Transparência, Accountability, Compliance, Boa Governança e Princípio Anticorrupção”. Estas palavras, que dão nome ao referido curso, transformar-se-ão (uso temeroso da mesóclise) em valores e práticas quando não forem instrumento seletivo para designar quem tem direito a sonegar impostos, direito a guardar dinheiro em paraíso fiscal, direito a passar na frente na fila do passaporte (ter direito a passaporte e mudar de país, não estou falando para lazer mas para sobreviver), direito a estudar Direito, direito a elaborar e interpretar leis, direito a modificar orçamento público fora dos prazos, direito à auxílio moradia (e não “minha casa, minha vida”), direito à auxílio alimentação e refeição (não “bolsa família” ou “bolsa gás”), direito à aceitar ser ministro do STF e presidir o TSE (o trabalho escravo do Gilmar Mendes) e quantos outros “direitos” poderíamos listar aqui. Que são legítimos para alguns e imorais para outros, esta sim nossa tradição de corrupção e desigualdade institucionalizada.

É por essas e outras que o juiz Sérgio Moro não é bem-vindo a Coimbra por grande parte da comunidade brasileira de estudantes, pesquisadores e seus familiares a qual me junto aqui. Estas pessoas, reunidas como coletivo político, associação de pesquisadores ou apenas concidadãos indignados na mesa de um café ou numa escrivaninha de biblioteca não aceita passivamente que o meio acadêmico, político e jurídico seja apenas espaço de reprodução e seleção sexista, racista e elitista de quem permanece nos espaços de poder e decisão. Que nossa vida cotidiana continue sendo simbólica e efetivamente sinônimo de resistência! Parabenizo e admiro a todxs que seguem com seu idealismo, pichando muros, fazendo Ciência, reclamando no facebook, desde que seja genuína e coletivamente. É de dignidade que estamos falando, é de construção de um discurso contra hegemônico de direitos humanos. Abaixo ao direito de qualquer pessoa a ser corrupta.

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