Boston – O fim de semana passado foi bastante movimentado para quem vive pendurado nas mídias digitais e ansiando por notícias. Enquanto se respirava ainda a visita do presidente Luís Inácio Lula da Silva a Joe Biden e assistia-se as cenas de horror de resgate de pessoas do terremoto na Turquia, o abatimento de balões “chineses” flutuando no espaço aéreo norte-americano eram anunciados pelo governo dos EUA.
Israel amanhecia sob protesto de uma multidão contra os planos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, de limitar e subjugar a Justiça ao Poder Executivo, quando ele próprio é investigado por corrupção (qualquer coincidência com o cenário que estávamos sob ameaça recentemente no Brasil não é mera coincidência). Jair Bolsonaro tentou pegar carona na visibilidade dos acontecimentos, anunciando que voltaria brevemente ao Brasil, mas não teve a repercussão que esperava.
Porém o que movimentou mesmo as mídias alternativas foi uma suspeita levantada sobre uma catástrofe que passou logo a ser qualificada como o “maior desastre ambiental da história” , e cunhada de “Chernobill 2.0”. Passado um casal de duas semanas desde que o acidente com um trem que transportava um perigoso gás incolor, o cloreto de vinil, descarrilou no condado de Columbiana, ao longo da fronteira entre os estados de Ohio e Pensilvânia, nos EUA, somente hoje grande parte da mídia internacional resolveu explorar sobre o assunto.
A edição do New York Times de hoje circulou um artigo em favor da comunidade atingida dizendo que os moradores de Ohio ainda temem por sua segurança. O NYT também refletiu que ainda há muita especulação sobre esse acidente. Para muitos comentaristas de todo o espectro político, a especulação foi muito além dos fatos conhecidos. “Os comentaristas de direita têm sido particularmente críticos, usando a crise para semear a desconfiança sobre as agências governamentais e sugerir que o dano pode ser irreparável,” disse a matéria.
Ainda que intensos apelos tenham sido feitos por especialistas em meio ambiente, ferroviários e funcionários da Norfolk Southern, empresa transportadora da carga de materiais perigosos, sobre possíveis efeitos cataclísmicos por conta das operações de minimização dos efeitos do acidente, houve falta de clareza sobre o envolvimento do governo norte-americano nessas operações.
Após o acidente, entretanto, que não fez vítimas, a empresa e as autoridades estaduais, temendo uma explosão (50 vagões dos 150 incendiaram com o impacto do acidente) ordenaram que os residentes próximos evacuassem antes de realizar uma queima controlada, que liberou uma nuvem de fumaça tóxica por várias horas que foi visível por quilômetros.
A medida encheu o ar e cobriu as águas superficiais do condado e o solo com produtos químicos. O próximo cenário foram peixes mortos flutuando em riachos próximos e um aroma enervante pairando no ar. A população local também foi orientada a evacuar.
A crítica maior nas mídias digitais foi de que o governo Biden teria estado muito mais preocupado em abater e explicar que os tais “balões chineses” flutuando no espaço aéreo dos EUA podiam não ser exatamente chineses, mas também não eram OVNIs que transportavam alienígenas.
A cobrança de maior demonstração de preocupação por parte do governo foi feita inicialmente por um jornalista de imprensa independente e que ocasionou a sua detenção pela polícia da guarda nacional. A detenção do jornalista foi condenada pelo Pentágono, o que significa que o governo não estava tão ausente assim das operações.
Um meme com a imagem de Biden, legendas em francês e um suporte vocal perfeito da sua voz anunciando a visita dos alienígenas aos terráqueos também circulou nas plataformas digitais. A peça possivelmente alude ao radio-drama fictício “A guerra dos mundos”, de Orson Welles, que a CBS transmitiu em 1938 como se fosse uma notícia, com o narrador dizendo que marcianos estavam invadindo New Jersey.
A primeira deepnews que se tem conhecimento na história da fake news foi ouvida, na época, por cerca de 32 milhões de pessoas através do rádio e causou um grande alvoroço. Naquela época as pessoas estavam sensíveis, com medo da guerra, e era Halloween. Elas pensaram que a invasão dos marcianos era verdadeira. A população entrou em pânico, deixaram as suas casas, encheram as igrejas e algumas pessoas surtaram.
O meme francês não assstou os norte-americanos. Mas o que se viu no fim de semana passado, foi a secretária de Imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre (foto), boa parte do tempo se desdobrando em explicar que os EUA não estavam sendo invadidos por alienígenas, além de Biden diretamente.
Na verdade, desde que houve o acidente, o Ministério dos Transportes, a Agência de Proteção Ambiental Federal, E.P.A., e as autoridades estaduais de Ohio reconheceram que a situação era desastrosa em muitos aspectos. E, após o controle da situação, declararam que a qualidade do ar voltou a níveis seguros, autorizando os moradores a retornar para a comunidade. Embora o odor químico persista.
“As pessoas podem sentir o cheiro dos contaminantes mesmo quando estão muito abaixo das concentrações perigosas,” de acordo com a agência. O teste de água não encontrou “nenhuma indicação de risco” para os sistemas públicos de água até agora, a E.P.A. disse, embora poços privados devam ser testados.
Os serviços de abastecimento do rio Ohio estavam tomando precauções e pelo menos uma empresa disse que não detectou nenhuma mudança na água. Em uma reunião na prefeitura na quarta-feira, moradores frustrados pressionaram as autoridades por garantias de que o ar e a água eram seguros.
Os especialistas pediram cautela ao avaliar as consequências a longo prazo, alertando que contaminantes transportados pelo ar podem se depositar em superfícies, penetrar em poços e migrar através de rachaduras para porões e residências.
Sobre a abordagem tardia da grande imprensa em cobrir o assunto é talvez ”compreensível”. A Norfolk Southern é uma das maiores empresas dos Estados Unidos com propriedade de 74,24% de acionistas institucionais, O Vanguard Group Inc é o maior acionista individual da Norfolk Southern, possuindo 18,60 milhões de ações, representando 8,17% da empresa. A mídia norte-americana possivelmente estaria refletindo esses interesses.
Quanto ao envolvimento e visibilidade do governo norte-americano no problema através de técnicos de suas agências e não da figura do ministro, do presidente, ou de sua porta-voz, além da especulação dos interesses capitais e de segurança, eu tenho uma explicação. E aí o que Biden revelou sobre Israel para Thomas Friedman pode ser válido para esssa questão.
“O que a democracia americana e a democracia israelense têm de genial é o fato de serem ambas alicerçadas em instituições robustas, em sistemas de freios e contrapesos, em um judiciário independente. A formação de consensos para mudanças fundamentais é muito importante para garantir a adesão das pessoas, de modo que tais mudanças sejam sustentadas”.
Ou seja, as instituições nos EUA, e isso inclui os departamentos e orgãos vinculados aos três poderes, andam sozinhas. Quem não está acostumado com isso, como nós brasileiros, estranha.
Ana Alakija é jornalista com Mestrado em História pela Salem State University, Massachusetts