Lula trabalha para reviver a democracia no Brasil contra um poderoso bloco de extrema-direita

Publicado em: 08/05/2023

Ana Alakija
Ana Alakija

De Boston – Enquanto as principais mídias convencionais norte-americanas ultimamente têm se resumido a reportar e ou analisar o executivo do governo brasileiro pragmaticamente, uma voz de Brooklyn (NY) levantou forte nesse fim de semana, trazendo o debate para um tema mais instigante e que resume a missão maior do presidente Luís Inácio Lula da Silva no planeta.

 

A revista Jacobin publicou uma análise do governo Lula e sua performance com outro olhar, num momento em que a grande mídia tem refletido uma visão neoliberal de Brasil, de olho nas respostas do mercado financeiro e do egocentrismo da política estrangeira estadunidense.

 

Para quem pensa que o artigo é uma carta rasgando elogios ao presidente Lula, está completamente equivocado.  O texto, assinado pelo doutorando Olavo Passos de Souza, da Stanford University, é muito mais um exercício de pensamento (auto) crítico sobre Lula e seu governo, no estilo da estrutura do pensamento filosófico dos pensadores da Escola de Frankfurt. Mas que oferece a possibilidade de encontrar uma saída na queda de braços entre David e Golias.

 

O magazine Jacobin, como seu próprio nome explica, se define como uma voz de liderança da América esquerdista, que oferece perspectivas sobre política, economia e cultura. A versão impressa é quinzenal e tem 75 000 assinantes. A versão web tem uma audiência de 3 milhões de navegadores. Um quantitativo razoável para influenciar pensares e gerar uma justa opinião e imagem sobre Brasil e do presidente brasileiro na América.

 

De acordo com o analista, o presidente Lula, desde que assumiu a presidência, teve que trilhar um caminho traiçoeiro, enfrentando um poderoso bloco ultraconservador no Congresso Nacional do Brasil. E que o trabalho hercúleo de reparar a capacidade do estado, enquanto evita uma crise econômica, testará suas habilidades até o limite.

 

O crítico aborda de tudo: desde os compromissos de campanha para as eleições presidenciais, o resultado das urnas,  posse na presidência, sucesso e fracassos do governo de quatro meses,  as questões institucionais, econômicas e as relações com seus públicos internos e externos.

 

Numa rápida retrospectiva do tom que foi o governo desde que Lula assumiu o cargo, a análise assinala que o presidente teve que enfrentar a sua árdua tarefa de reconstruir as instituições do país, bem como a imagem internacional da nação, após o caótico governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

 

A série de tropeços “…testaram a reputação de Lula como um ‘milagreiro’ político.”  Os pontos de constrição variam de um Congresso dominado por conservadores a um banco central antagônico. “O ex-líder sindical de 77 anos está descobrindo que governar é uma tarefa mais difícil do que nunca, ao iniciar seu terceiro mandato como presidente”, diz Souza.

 

O autor refere à popularidade [atualmente esmaecida] do presidente em seus dois primeiros mandatos na primeira década dos anos 2000, quando o Brasil tinha uma economia forte e uma classe média em rápido crescimento; “em parte, por conta das políticas sociais de seu governo, bem como um contexto global benigno, quando as relações amigáveis entre Estados Unidos, China e Rússia pareciam viáveis”.

 

No cenário de governança atual, aponta que é difícil manter o discurso de campanha sobre “felicidade’ e que “o Brasil está de volta”, quando o presidente está sendo forçado a enfrentar o fato de que o Brasil e o mundo estão em situações radicalmente diferentes daquelas que ele enfrentou ao assumir o mesmo cargo em 2003. Como também abstrusa é sustentar a sua retórica consistente com essa visão, com foco no crescimento da economia, no aumento dos gastos sociais e na reconstrução da posição diplomática do Brasil.

 

As críticas políticas abordam a grande tenda de campanha presidencial formando uma “Frente Única pela Democracia” para confrontar o extremismo da direita de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022 e que terminou vencendo “por uma margem estreita” de votos.

 

Essa é uma questão que talvez mereça melhor consideração, uma vez tornada evidente que a margem de votos entre Lula e Bolsonaro pode não ter sido tão pequena diante das sabotagens reveladas e do plano de estratégia militar recentemente descoberto, e aplicado no dia da eleição pelas polícias rodoviárias federais nas estradas do Nordeste, onde Lula tinha mais eleitores, dificultando, através de blitz, o acesso de milhares (milhões?) de pessoas aos locais das urnas para votar.

 

O fato é que, diz o analista, enquanto todos os governos brasileiros desde o fim da ditadura militar na década de 1980 governaram por meio de alguma forma de coalizão, a grande aliança de Lula testou os limites do sistema multipartidário brasileiro, reunindo  “…desde socialistas de extrema-esquerda a neoliberais de centro-direita,  gerando “…mais do que algumas vozes e direções dissidentes dentro do novo governo.”

 

Não escapam do olhar sob esse prisma, o seu gabinete controverso. Muitas forças políticas com as quais Lula estabeleceu compromissos na campanha eleitoral lucraram com as promessas e concessões, recebendo cargos de alto escalão em seu governo. Assinalando que dos trinta e sete cargos ministeriais, apenas dez são ocupados pelo próprio Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula.

 

E os escândalos envolvendo alguns desses ministros (o crítico dá nome aos bois), muitos comprometidos com a plataforma neoliberal, ou envolvidos com falcatruas, como sonegação fiscal, e até conluio com milicias envolvidas no assassinato, em 2018, de Marielle Franco, cuja irmã, Anielle Franco, ocupa o mesmo gabinete como ministra da Igualdade Racial.

 

O analista considera como mais chocante o envolvimento do general Gonçalves Dias, ministro do departamento de segurança institucional de Lula, no ataque de 8 de janeiro aos prédios do Congresso e da Suprema Corte por partidários descontentes de Bolsonaro que questionaram a legitimidade da eleição de Lula [a versão brasileira do ataque de 6 de Janeiro em 2021 ao Capitólio americano pelos correligionários de Donald Trump para impedir que Joe Biden tomasse posse].   O ministro renunciou [sabemos de antemão que ele justificou sua presença nos atos como “gerenciador da crise”] mas os estragos já foram feitos.

 

E a relativa estabilidade no gabinete de Lula, mesmo diante das revelações polêmicas, atribuída em parte à necessidade do governo de transmitir uma imagem estável. Em contraste com o “gabinete de porta giratória” de Bolsonaro, com ministros demitidos e admitidos rotineiramente.

 

“ O presidente simplesmente não pode se dar ao luxo de demitir ministros de partidos cujo apoio ele precisa não apenas para aprovar leis, mas também para impedir manobras políticas contra sua própria pessoa”, diz o analista, relembrando o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 que abriu precedente para a destituição de presidentes impopulares caso perdessem o apoio do Congresso. “As vitórias significativas dos candidatos de extrema direita nas eleições legislativas de 2022 só agravaram esse perigo para Lula”, o analista adverte.

 

Estamos falando de um modelo político do qual o Brasil ainda não conseguiu se desvencilhar, com ministros ‘feitos’ por parlamentares de bases aliadas. E de uma “base fraca” de Lula nas casas legislativas diante de um Congresso recheado de neoliberalistas e extremistas de direita. O que faz o governo Lula empurrar questões importantes a serem votadas no momento, por conta desse desequilíbrio de forças. Embora as nuances entre a teoria e a prática mostrem que no papel o presidente tem os números necessários para aprovar leis, aposta Souza.

 

No campo institucional, a análise aponta as dificuldades de fazer funcionar as instituições reguladoras, “que foram despojadas pelo governo Bolsonaro”, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Sem recursos, essas tem merecido de Lula total atenção por conta da necessidade de constante combate ao desmatamento e de  proteção indígena, especialmente o povo Yanomami, vítima de abusos dos direitos humanos, “que alguns chegaram a chamar de extermínio proposital” [ por que  não admitir o genocídio?].

 

“Até agora, o governo Lula teve que lidar com crises ambientais, de direitos humanos e políticas que, de muitas maneiras, prejudicaram suas propostas políticas de longo prazo”, diz o analista. Mas ele também aponta que essa situação está mudando rapidamente, com o plano econômico apresentado pelo governo e o esclarecimento da sua agenda de política externa.

 

A relação com os militares é avaliada também como complexa, desconfortável e mesmo tensa. O ataque a Brasília por partidários de Bolsonaro em 8 de janeiro estimulou o governo a abordar a questão da segurança nacional e o papel dos militares. As investigações do evento revelaram amplo conhecimento e apoio ao ataque por parte das forças armadas brasileiras.

 

Eu diria que muito mais que isso, as investigações estão caminhando na direção das forças armadas e do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro como mentores.   Segundo o analista, ainda não se sabe se Lula seguirá uma postura mais conciliadora ou mais punitiva em relação às instituições militares brasileiras. Para mim, essa não é uma questão de posicionamento político, mas de Justiça.

 

O analista lembra que durante o primeiro e segundo mandatos de Lula, a possibilidade de uma intervenção militar contra o executivo foi praticamente inexistente. E que, no entanto, agora, depois do que só podemos classificar como uma tentativa de golpe, ainda que notavelmente desorganizada, o presidente deve agir com cuidado ao lidar com a liderança militar.

 

A resposta do governo aos ataques foi imediata, com o ministro da Justiça, Flávio Dino, prometendo justiça e prisões rápidas, chegando a chamar os envolvidos de “terroristas”. [Enfatizando: cabe ao Pode Executivo conduzir investigações através da Polícia Federal, como tem feito,  e ao Ministério Público encaminhar os resultados ao Poder Judiciário, o que tem sido feito também],

 

No plano econômico, o primeiro grande objetivo de Lula,  não escapou críticas ao conflito direto com o atual presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, nomeado por Bolsonaro. Sob a orientação de Campos Neto, o Banco Central se comprometeu com juros altos, para grande consternação de Lula, que acredita que baixar as taxas podem estimular a economia.

 

O conflito entre o presidente da República  e o presidente do Banco foi exarcebado especialmente pela pressão do setor financeiro [quem mais lucra com os juros altos] , mas também dentro do seu próprio  governo, em que a posição sobre a política econômica não tem sido unânime.

 

Para o analista, os comentários de Lula nos últimos meses pareciam mais voltados para Hoffmann, ao reiterar seu slogan clássico de que “educação não é gasto, mas investimento”. O ministério do Tesouro de Fernando Haddad criticou esse argumento. O Plano Haddad, como é conhecido, visa estabelecer certos tetos de gastos para aumentar o superávit orçamentário dos próximos anos. O que quer que Lula pense sobre o assunto, tudo indica que o plano irá à votação ainda neste primeiro semestre parlamentar de 2023 — o primeiro grande desafio legislativo do governo Lula, afirma.

 

Por fim, as críticas à política externa, com Lula tentando voltar aos anos 2000, quando o objetivo diplomático do Brasil era buscar um arranjo global multilateral por meio do BRICS (a parceria econômica entre Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, África do Sul), num contexto atual global não mais tão benigno.

 

A análise assinala o compromisso do governo com o mercado chinês restabelecido por Lula e as medidas recentes para acabar com a dependência do país do dólar norte-americano. Souza assinala que em 12 de abril, a primeira transação direta entre o Brasil e o Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), o maior banco da China, foi realizada usando o renminbi em vez do dólar, significando um claro afastamento do Brasil da esfera econômica dos EUA.

 

A política do Brasil em relação à Rússia também tem se mostrado polêmica,  olhando a guerra na Ucrânia.  Apesar de colocar o Brasil como um possível mediador para negociar a paz entre a Rússia e a Ucrânia, o crítico relembra que Lula teve que se retratar quando citou que os dois países foram igualmente responsáveis pelo conflito, o que gerou intensas críticas no Ocidente.

 

Para Souza, a posição histórica do Brasil de “multipolaridade benigna” – como foi descrita no governo de Dilma Rousseff – ou a “Doutrina Lula” – como alguns a denominaram mais recentemente – tem suas raízes na época em que o país desempenhou um papel fundamental na o Movimento Não-Alinhado durante a Guerra Fria. A política externa brasileira rejeitou a ideia de assumir um lado ideológico em favor de relações pragmáticas para fortalecer as potências regionais.

 

Essa doutrina rejeitou o papel dos EUA como uma “hiperpotência” ao final da Guerra Fria, diz o crítico, favorecendo o comércio com mercados emergentes como os da China e da Índia. Essa foi uma abordagem que Lula abraçou de todo o coração durante seus dois primeiros mandatos.

 

No entanto, diz o analista,tornou-se muito mais difícil de seguir em um mundo cada vez mais polarizado. Para o governo Lula, preservar a relação com a Rússia e se aproximar do mercado chinês pode significar distanciar-se das esferas americana e europeia, mesmo que inadvertidamente.

 

Da minha perspectiva, as forças da direita e da extrema-direita, com o apoio da grande mídia ocidental, têm feito um terrorismo com essa ‘possível realidade’, como forma de pressão para manutenção da sua supremacia.

 

O analista do Jacobin observa que nos próximos meses, a capacidade de Lula de articular sua agenda por meio de um Congresso tão conturbado, evitar uma recessão econômica e preservar uma relação diplomática multipolar para o Brasil será posta à prova.

 

Eu presumo que a democracia  brasileira, com todas as suas imperfeições, ainda é gigante, como o Brasil pela sua própria natureza.

 

Ana Alakija é jornalista com Mestrado em História pela Salem State University, Massachusetts

 

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