Por iCarros – Em todo 20 de janeiro comemora-se no Brasil, de forma oficial e reconhecida, o dia de São Sebastião – feriado na cidade do Rio de Janeiro –, dia de São Fabiano, dia de Oxóssi, dia do farmacêutico, dia da consciência indígena dos filhos da nação Tupi que habitava as terras de Pindorama e, também, o dia nacional do Fusca.
Espere! Como assim? Um carro pode ter um dia nacional? Pode ser equiparado a São Sebastião, aos farmacêuticos, aos índios da nação Tupi das terras de Pindorama? Sim, um carro pode ter um dia nacional – mas apenas se este carro for um Fusca.
Não existe dia do Opala, dia do Galaxie, dia do Karmann-Guia, dia do Corcel ou dia do Puma, para citar apenas alguns poucos modelos clássicos nacionais. Nem dia do BR-800. Só existe o dia do Fusca.
E por simples razão: nenhum outro automóvel representa tanto para os brasileiros, ainda hoje, pleno século 21, quanto o Fusca. Ele não remete hoje exatamente a um automóvel, mas sim a ideais de infância e juventude, liberdade, amor, saudosismo, aventura… e companheirismo. É quase impossível encontrar qualquer pessoa na faixa dos 40 anos para cima que não saiba relatar ao menos uma passagem de vida a bordo daquele veículo que saiu pela primeira vez da linha de produção da unidade Anchieta da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, SP, naquele 20 de janeiro de 1959, chamado VW Sedan.
A popularidade do Fusca está diretamente relacionada à sua longevidade – sobreviveu até 1986 e depois ressuscitou feito Fênix de 1994 a 1996 – e volume de vendas: apenas no Brasil foram impressionantes 3 milhões de unidades. No mundo, incríveis 20 milhões.
Mas a aura do Fusca está diretamente relacionada às suas próprias características, únicas, inéditas e… muito estranhas. Ele era verdadeiro patinho feio: todo esquisito, pequeno, com desenho fora do padrão – para-lamas salientes, separados do resto do conjunto, só para começar –, porta-malas na frente, motor atrás e, ainda por cima, refrigerado a ar. Além disso, o Fusca mudava quase nada de um ano para outro.
Em suma, era o típico caso do sujeito que tinha tudo para dar errado. Mas deu muito, muito certo. Tão certo que o Fusca conseguiu ultrapassar a mítica de um carro, a mítica de uma fabricante de veículos. Foi ele, o Fusca, a ensinar ao brasileiro o que era ter o seu próprio veículo. E, muito mais, a ensinar a indústria automotiva nacional o que era fabricar, vender e manter um automóvel, digno desta denominação, em larga escala.
Porém, de maneira espantosa, o Fusca conseguiu angariar também o coração dos mais jovens – a geração hoje abaixo dos 30, 40 anos. Se não há mais como adquirir um Fusca zero KM em uma concessionária, este público é atendido com uma infinidade de gracejos que remetem diretamente ao modelo, que se tornou nesta segunda década de novo século verdadeiro ícone pop: há pen-drives, porta-retratos, luminárias, camisetas, porta-chaves, mouses, brinquedos, quadros, porta-recados, baleiros, pantufas e outras centenas de objetos que homenageiam diretamente o modelo, imitando seu formato. O Fusca esteve até mesmo em edições recentes da Bienal de São Paulo e, pasme, até na São Paulo Fashion Week, a bordo de desfile do estilista Ronaldo Fraga – que criou sapatilhas femininas no formato do veículo.
Para Paulo Kakinoff, hoje presidente da Audi brasileira e ex-chefe de desenvolvimento de vendas do Grupo Volkswagen, tal fenômeno deve-se à conjunção de três fatores: “Primeiro o design, provavelmente o mais carismático da indústria automotiva em todos os tempos, combinando harmonia de proporções com o charme das formas. Além disso o Fusca foi parte do cenário de uma era romântica: seu auge ocorreu em período de fortes transformações culturais, sociais e políticas. Tornou-se não só o carro do povo mas também o dos hippies, dos namorados, da elite intelectual, contestadores, revolucionários, poetas. Há, finalmente, o fator de humanização do carro: em quase em todos os mercados onde foi comercializado as campanhas publicitárias o retratavam como amigo, carro com sentimentos, parceiro de todas as horas, inteligente, com uma espécie de temperamento próprio e extremamente bem humorado. Esta mítica consolidou-se definitivamente com a chegada do Herbie, de Se Meu Fusca Falasse”.
Dessa forma o Fusca deixou a linha de montagem para entrar com toda força no mundo dos ícones pop, “assim como o símbolo da paz, da Coca-Cola, do Mickey Mouse ou da clássica imagem de Che Guevara”. A Volkswagen, porém, soube com maestria transmitir a aura mágica do Fusca para toda sua linha de modelos, seja durante sua vida, na preparação para o encerramento de sua produção e ainda bem após seu fim. Modelos como Brasília e Variant foram também sucesso de vendas não só por adotarem receitas mecânicas semelhantes à do Fusca mas, principalmente, por serem produzidos pela mesma empresa que fazia o Fusca.
A aura também foi transmitida, ainda que aos poucos, para modelos que nada tinham de relação tecnológica com o Fusca, de tração e motores dianteiros e refrigerados a água herdados da Audi, o Passat e a dupla Santana e Quantum. Entretanto o único a atingir as marcas históricas do Fusca, e inclusive superá-las, foi o Gol. O compacto ultrapassou em 2011 o Besouro no número de anos consecutivos à frente no ranking de vendas. Pois se o Fusca dominou a tabela de 1960 a 1983, 23 anos em sequência, o Gol é líder desde 1987, 24 anos completados no ano passado. É coisa que pouca gente poderia acreditar quando de seu lançamento, em 1980 – assim como aconteceu naquele 1959, quando quase ninguém botava fé no estranho VW Sedan.
É improvável, entretanto, que daqui a muitos e muitos anos, quando o Gol sair de linha, ele também se transforme em ícone pop e seus modelos passados sejam vistos por aí representados em pinturas, instalações da bienal, pen-drives. Pois, ao contrário do Fusca, o Gol mudou muito em suas até agora cinco gerações, acompanhando a evolução da indústria mas, ao mesmo tempo, igualando-se aos rivais Palio, Celta e tantos outros, deixando de lado o romantismo em nome da sobrevivência.
De um desenho único imune ao tempo, totalmente descaracterizado do restante dos demais automóveis, e de uma verdadeira teimosia mercadológica só o Fusca pode se gabar. E é essa teimosia que recebe hoje espécie de premiação e reconhecimento em forma de suvenires. E, é claro, de dia nacional.
Fonte, Revista iCarros. Publicado originalmente na revista AutoData no. 234, caderno AutoData Documento no. 49. Foto: Anelisa Lopes