Repórter não é taquígrafo

Publicado em: 08/02/2012

Mauro Malin do Observatório da Imprensa – Em meados de janeiro, o ombudsman do The New York Times perguntou aos leitores se eles achavam que repórteres deveriam se limitar a registrar declarações de pessoas que aparecem no noticiário. O assunto rendeu polêmica descrita e comentada neste Observatório nos tópicos “Pergunta do ombudsman do NYT irrita leitores”e “O repórter deve contestar um entrevistado que mente ou distorce fatos?”.

Em algum lugar se escreveu que anunciantes poderiam ficar ressabiados se declarações de figuras proeminentes começassem a ser sistematicamente desmontadas por jornalistas. É um argumento que resume dilemas éticos e profissionais, modelo de negócios e implicações políticas: tudo que conta na imprensa.

Mas o problema dos anunciantes não é, em última instância, com os poderosos, e sim com os leitores, os potenciais compradores ou usuários que pretendem sensibilizar. Por isso se diz que o maior patrimônio de um periódico é sua credibilidade.

Voltemos, portanto, à questão do jornalismo propriamente dito, sem deixá-la contaminar-se pelo raciocínio do Departamento Comercial, embora sem ele, fique bem claro, não exista jornal minimamente independente.

Repórteres e editores não devem, de fato, se limitar a reproduzir o que tenha sido dito, se algo na declaração merecer reparo. Essa prescrição não é tão velha quanto a Sé de Braga, mas vigora há bom tempo na imprensa brasileira. Há décadas. Se repórteres e editores têm estofo para honrá-la, é outra história.

O candidato Figueiredo
Em 1978, o Prêmio Esso foi dado a Getúlio Bittencourt (falecido em 2009) e a Haroldo Cerqueira Lima pela matéria “Fala Figueiredo”, assim descrita no UOL:

“A entrevista exclusiva com João Baptista Figueiredo, então ministro-chefe do SNI, que se preparava para suceder o presidente Ernesto Geisel, causou agitação no mundo político. O general se mostrou bastante áspero na conversa pontuada por discordâncias entre os repórteres e o entrevistado. Ele defendeu a eleição indireta para presidente e direta para governadores em 1982.”

Anos depois, Figueiredo enriqueceria o capítulo de bizarrices da crônica política ao dizer que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo.

Em casos escabrosos recentes, como o da declaração de Delfim Netto sobre empregadas domésticas – “São um animal em extinção; quem ainda tiver, aproveite”, foi mais ou menos o que ele disse –, é fácil entender que a natureza esdrúxula do comentário passa a ser a notícia.

Mas há casos não tão óbvios. Outros pertencem à família do óbvio que passa batido.

Banqueiro poupado
Entrevista feita em Davos com o presidente do Banco Itaú, Roberto Setúbal, publicada no Estado de S. Paulo (“Com Dilma governo ficou mais técnico”, 29/1), é um desses casos.

A satisfação do banqueiro com o governo de Dilma Rousseff, prolongamento da satisfação com os dois mandatos de Lula, é certamente a parte principal da entrevista. Mas em determinada altura os entrevistadores perguntam se “o país tem condição hoje de ter uma taxa de juros de um dígito”.

Setúbal responde que sim. Louva os progressos feitos em 20 anos. Faz uma constatação e um prognóstico:

“Se a gente olhar os últimos dez anos, ela se reduziu um pouco menos de 1% ao ano. Mas acho que continuará se reduzindo, nesse ritmo, e, portanto, a tendência é que o Brasil fique com uma taxa de juros de um dígito”.

E aqui chegamos ao ponto central da argumentação. Faltou a pergunta que poderia incomodar o entrevistado e reconfortar multidões de leitores: “E por que os bancos continuam praticando taxas estratosféricas?”

Seria o óbvio num momento em que está em curso discussão na qual se aponta como entrave ao crescimento econômico brasileiro o desencontro entre a taxa Selic e os juros dos bancos. É uma hipótese cogitada por economistas de linhas ideológicas diferentes.

No blogue Poder Econômico, o jornalista Jorge Félix cita artigo publicado por Roberto Troster, ex-economista-chefe da Febraban: “Enquanto a taxa Selic, centro das atenções, aumentou 0,25% em 2011 e foi manchete em cada alteração, a de crédito pessoal (excluído o consignado) se elevou 11,40% (quarenta e cinco vezes mais!), e não foi notícia”. Leia aqui o tópico.

O silêncio sobre determinados aspectos da vida empresarial e econômica foi tratado recentemente neste Observatório da Imprensa (“O preço da redução de custos”).

Menino pobre
Importa registrar também que muitas vezes os repórteres, sem agir como provocadores, conseguem contrastar informações ou declarações com outros tantos fatos ou declarações.

Dois exemplos recentes, escolhidos aleatoriamente.

Na reportagem sobre o médico Roberto Kalil, capa da piauí de fevereiro/2012, a jornalista Paula Scarpin não deixa passar nada sem checagem. O médico dos presidentes declarou em 2010 à revista Veja que seus pais tiveram dificuldade para manter dois filhos no Colégio Dante Alighieri. Escreve Paula Scarpin:

“Segundo ele, seu gosto pelo cachorro-quente vinha dessa época. ‘Meus amigos todos compravam o sanduíche no recreio, mas, como eu não tinha dinheiro, era obrigado a comer o pão com manteiga que trazia de casa’.

‘Nem me fale dessa história do cachorro-quente!’, agitou-se Guiomar [mãe de Roberto Kalil] na sala. ‘Você está vendo esta casa? Ele cresceu aqui! Com piscina, quadra de tênis. Nós nunca tivemos menos de oito empregados.’

Ao saber que o filho havia dito que precisou de bolsa de estudo no colégio, Guiomar desatou a rir: ‘Que filho da… Eu não sei por que ele faz isso’.”

A revista é mensal, pode-se argumentar que a jornalista terá tido bastante tempo para apurar e escrever seu texto.

Mercadante
Mesmo no tiroteio cotidiano, porém, é possível manter olho vivo.

Na sexta-feira (3/2), a Folha de S. Paulo noticiou que o MEC decidiu destinar a professores, e não a alunos, até 600 mil dos 900 mil tablets que o governo vai comprar. E pontuou:

“O ministro [Aloizio Mercadante] agora diz que há estudos de universidades federais sobre o uso pedagógico da máquina e que os professores serão treinados. Antes, o ministério dizia que o uso seria aprendido na prática.

“Apesar de estar no cargo há dez dias e de não ter lançado a licitação, Mercadante disse que o programa foi todo formatado na sua gestão e que os equipamentos começarão a ser distribuídos a partir do segundo semestre deste ano.”

Como se vê, não é preciso muito. Algum conhecimento da área que se cobre, um mínimo de memória e uma dose razoável de inconformidade diante da tentativa de reivindicar um mérito que os fatos mais comezinhos indicam não pertencer ao declarante.

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