De Marconi Souza Reis – Eu li muita gente lamentando e apoiando, essa semana, a decisão do deputado federal Jean Wyllys em renunciar ao mandato por causa das ameaças de morte. Mas, infelizmente, vi pessoas criticando e até debochando da sua atitude, daí que decidi falar um pouquinho sobre o dia que conheci o deputado, quando ele ainda era professor de jornalismo.
Mas para chegar até aquele encontro com Jean Wyllys, preciso fazer um resumo bem sucinto do meu jornalismo, até porque, a bem da verdade, eu sou a pessoa mais autorizada neste país para avaliar e conceituar o que é a ameaça de morte. Se você acha arrogante essa última frase, então me acompanhe nesse pequeno resumo.
O empresário mais temido do Rio ao Ceará, passando pela Bahia, era o baiano Edson Cabral Ribeiro. De origem militar, ficou milionário como proprietário de várias empresas de segurança no litoral brasileiro, sendo inclusive o braço direito de Antonio Carlos Magalhães nos anos 70 para trabalhos milicianos, quando requisitado.
Eu detonei esse empresário militar numa reportagem de página inteira, em setembro de 1997, na qual revelei seus golpes com “laranjas”. A bomba foi tamanha, que ACM viajou de Brasília para Salvador no mesmo dia da publicação (era uma quarta-feira). Edson Cabral Ribeiro e o arquiteto Fernando Franklin invadiram o jornal A Tarde à noite.
O empresário tentou me agredir, mas foi detido pelos seguranças e por Cruz Rios, diretor do jornal, que foi chamado às pressas. Foi um inferno aquela noite. “Se o juiz não lhe prender, eu darei cabo de você”, gritava Cabral, que tinha empresas de segurança e limpeza no Rio, Vitória, Salvador, Aracajú, Maceió, Recife e Fortaleza.
No dia seguinte, Zezito Magalhães, homem sério, secretário estadual de Saúde, irmão de ACM, rompeu os contratos com Edson Cabral Ribeiro. Caramba. Eu passei a ser chamado de “zumbi” por alguns jornalistas, que já me odiavam demais, visto que outras matérias bobinhas minhas tinham repercussão na imprensa de Rio e Sampa.
Aquela reportagem, porém, atraiu a atenção da enfermeira Heloísa Gomes. Mulher bonita, dona de curvas demais generosas e tia de um sobrinho assassinado, ela quis denunciar cinco militares que agiam num grupo de extermínio no bairro de Cosme de Farias, em Salvador. Sem citar os nomes dos militares da milícia, eu escrevi a reportagem.
O então governador Paulo Souto exonerou os cinco militares. Resultado: eu e a enfermeira passamos a receber ameaças de morte. Nelson Pelegrino, que amparava a enfermeira e era o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, também recebia ameaças.
Alguns meses depois, no dia 13/06/98, um sábado, Heloísa voltou a me procurar no jornal A Tarde. Dentro de um vestido vermelho, desfilando de lá para cá, como que a espera de um vento esvoaçante a ajudá-la exibir sua calcinha, ela lembrava Kelly Le Brock imitando Marilyn Monroe no filme “A dama de vermelho”.
Heloísa me procurou para dizer que, apesar de exonerados, os cinco policiais continuaram agindo em Cosme de Farias, recebendo grana de empresários locais para matar ladrões de galinha. Enfim, ela só desejava mais uma denúncia. O repórter Cristovaldo Rodrigues presenciou esse nosso encontro e disse a ela:
– Os caras vão matar você, querida, e não vai demorar…!!!
Heloísa soltou uma enorme gargalhada. Até hoje me lembro do riso no seu belo rosto. Exatos sete dias depois, em 20/06/98, ela foi metralhada na frente da maternidade Tsyla Balbino. Você acha que eu me acovardei com esse assassinato? Dez dias depois, 1º/07/98, revelei os nomes dos cinco ex-policiais que cometeram o assassinato.
Eles prometeram me matar – foram inclusive armados ao jornal A Tarde –, mas eu sobrevivi, inclusive para narrar essa história, que já publiquei aqui em 17 de fevereiro de 2017, com o título “O dia em que fui flagrado no motel”. Nessa outra história, lembre-se, eu fiquei na mão de milicianos dentro de um motel (vou disponibilizar o link do texto sobre o motel num dos comentários).
Bem, a partir de 1997 foram inúmeros policiais e delegados que foram exonerados ou que responderam ações judiciais por causa das minhas reportagens. Eu denunciei delegados e policiais de Juazeiro a Porto Seguro; de Barreiras a Paulo Afonso. Não ficava nada em pé. Vou citar apenas algumas séries em que recebi muitas ameaças de morte.
Uma delas foi sobre o narcotráfico, em 1999, e que já narrei nessa rede social. Eu denunciei o desembargador Walter Brandão, o magistrado Ivan Rocha, e suas ligações com os traficantes Wander Dornelles, Francisco de Assis Lima, Manoel Evangelista dos Santos e Eydimar de Almeida Medrado. Em razão dessas reportagens, o juiz foi exonerado pelo Tribunal de Justiça da Bahia.
Ainda nessa série de reportagens sobre o narcotráfico, revelei a história do traficante Otaviano Alves Neto, irmão da então secretária de Segurança Pública, Kátia Alves. Ele fazia parte da quadrilha, mas foi protegido pelo desembargador Walter Brandão, por meio de seu assessor Liberato Carvalho de Mattos, cunhado de Kátia Alves.
Outra série de reportagens que recebi muitas ameaças de morte foi intitulada “Golpe do Tigra”, também em 1999. Fui sozinho a Porto Seguro investigar um golpe armado por Jesus Moura, ex-prefeito de Guaratinga e um dos últimos coronéis do sul da Bahia. Ele era, pasme, presidente da Subseção da OAB-BA de Porto Seguro. Fiquei três dias entre Eunápolis, Porto Seguro e Cabrália.
O advogado Frederico Moura, filho de Jesus Moura, pegou um Tigra numa concessionária de Eunápolis para fazer um teste-drive e capotou o carro em Cabrália. Aí veio golpe: o pai, o filho, o dono da concessionária, o delegado de Cabrália e policiais militares, em conluio, fraudaram documentos para que o acidente acontecesse após o pagamento do seguro do veículo.
Eu fui lá, descobri tudo, e fiz fotos dos policiais com uma lente de 200 milímetros. Na manhã que eu pegaria o avião, Jesus Moura invadiu o hotel que eu estava hospedado (Hotel Terra Matter), sentou à mesa onde eu tomava café, e começou a chorar… Percebendo que não me dobrava, engrossou o discurso com ameaça de morte, e foi-se embora.
Eu publiquei quatro reportagens sobre esse caso. Já na primeira, publicada num domingo, o então presidente da OAB-BA, Thomas Bacellar, afastou Jesus Moura da Subseção. Na última reportagem, o governo de César Borges anunciou a abertura de processo administrativo contra o delegado e os policiais militares. E então as ligações telefônicas ameaçadoras não paravam no meu celular.
Um xará meu, que se chamava Marconi Reis, tinha o número do telefone fixo com o seu nome no catálogo da antiga Telebahia. Resultado: a vida do cara virou um inferno. A mãe desse Marconi, que é amiga da minha sogra, disse que ligavam e o ameaçavam até de madrugada. E que ele só respondia: – “Eu não sou o repórter. Só tenho o nome igual ao desse infeliz”! 🤣🤣🤣🤣🤣
Uma das séries que mais recebi ameaças foi intitulada “Dez jornalistas assassinados na Bahia”, publicada ao longo do ano de 2000. Eu viajei mais de cinco mil quilômetros para fazer essa série de reportagens, com o repórter-fotográfico Antonio Queirós, e denunciei os mandantes e executores dos assassinatos dos dez jornalistas baianos ocorridos na década de 1990.
Eu fui a Itabuna, Ilhéus, Eunápolis, Teixeira de Freitas, Itamaraju, Camacã, Vitória da Conquista, Barreiras, Juazeiro e Paulo Afonso, ou seja, em todas as cidades onde os jornalistas e radialistas foram assassinados entre 1991 e 1998. Recebi ameaças já em Barreiras. Em Itabuna e Eunápolis, os processos estavam arquivados pelos promotores públicos.
Em Itabuna, por exemplo, eu denunciei os nomes dos mandantes (um prefeito e uma secretária) e dos executores do crime (um delegado e dois policiais). Ao ler minha reportagem, uma jovem promotora desarquivou o processo. O policial Mozart Brasil foi condenado a 18 anos de prisão em 2003 em júri popular. A notícia saiu até no “Le Monde”, da França.
Aliás, por causa dessa série de reportagens, meu nome foi publicado no “Le Monde” e em jornais da Bélgica e Suécia. O policial Mozart Brasil me disse, pessoalmente, que iria me matar, mas, segundo eu soube posteriormente, ele saiu da prisão e hoje é evangélico. Como se vê, nem todo evangélico é uma goiaba podre.
Agora mesmo, em maio de 2018, ocorreu finalmente o júri do ex-prefeito Paulo Dapé e de três milicianos, em Eunápolis, pela morte do radialista Ronaldo Santana. Fui eu também quem os denunciou à época. Dapé tentou me agredir na frente de Sylvio Simões, dono do jornal A Tarde, e saiu de lá me ameaçando de morte. Foi absolvido agora no júri de 2018.
Até em Lauro de Freitas, onde resido, eu denunciei militares que protegiam supermercados, bancos e outras empresas, “em troca de propina”, de acordo com o ex-magistrado Ubaldino Vieira Leite Filho. Recebi muitas ameaças de morte, mas três policiais responderam a processos, juntamente com o comandante da 41ª CIPM, capitão Ronaldo de Souza Tosta. Eles foram transferidos para o Vale das Pedrinhas, em Salvador.
Mas a série de reportagens que recebi mais ameaças foi contra o Corregedor da PM, coronel Adelson Guimarães. Ele perdeu o cargo e foi mandado para o Corpo de Bombeiros. Antes disso, porém, infernizou a minha vida. Até um carro me seguia, quando eu saía de casa para o jornal A Tarde. Adelson abriu três processos contra mim e levava os Oficiais de Justiça para me intimar às 5 horas da manhã.
Olha, a lista é enorme de gente que me ameaçou diretamente, a exemplo do grileiro Aécio Palma Batista, que se tornou dono ilegalmente de boa parte das terras de Boipeba, juntamente com sua esposa, a juíza Maria do Socorro Palma Batista. Essa foi uma das mais instigantes séries de reportagens, sendo que na primeira eu trouxe o título: “Juíza é dona da ilha de Boipeba”
Entre os vários delegados que denunciei, e me ameaçaram pessoalmente, estão José Otávio Ramos, Jacques Valois e Gilberto Mouzinho. O primeiro foi exonerado; o terceiro, preso. Os delegados Gilson Prata e Waldir Barbosa, também denunciados, me trataram com cordialidade, mas com ódio insano nos olhos. Ambos enfrentaram processos administrativos e judiciais, principalmente Waldir Barbosa, o comandante dos grampos ilegais de ACM.
Um detalhe: havia uma dupla de policiais milicianos que aterrorizava o bairro de Periperi, por volta do ano 2000, que foi exonerada por causa das minhas reportagens. E eu encontrei um deles dentro de um ônibus, quando fiquei sem automóvel no segundo semestre de 2003. O cara desceu no mesmo ponto, por volta das 23 horas, na Estrada do Coco. Mas não me seguiu… Ufa.
Encontrei também um dos policiais que matou a enfermeira Heloísa Helena no carnaval de 2000. Ele tinha uns olhos fechados de tanto fumar baseado e os cabelos ruivos. Ficou parado à minha frente – a dois metros de distância –, depois riu para mim e foi-se embora. Enfim, eu tenho histórias nessa área de ameaças de morte como ninguém neste planeta. Só relatei 10% dos casos.
A minha lista tem mais de 300 agentes públicos denunciados. De soldados e policiais civis, a coronéis e delegados, eu denunciei também juízes, desembargadores, secretários (do município e do estado), vereadores, prefeitos, deputados, senadores, empresários, advogados, jornalistas, conselheiros (do TCE e do TCM), enfim, até chegar e acabar com o chefe de todos eles – ACM.
Uma empregada doméstica, que trabalhou na época para nós, disse que avistava policiais entrando no meu carro, quando eu saía para o jornal A Tarde. “O senhor é protegido por Deus”, dizia a moça, que alegava ver espíritos. Eu caía na gargalhada. Minha esposa não gostava dessa informação, porque na época queria ficar viúva. 🤣🤣🤣🤣🤣
Olha, quando eu já havia recebido todos os 15 prêmios jornalísticos regionais, nacionais e internacionais – três deles nos Estados Unidos (em Houston e Washington) –, fui convidado por duas estudantes de jornalismo (uma loira e uma morena, ambas lindas), para assistir a uma aula de Jean Wyllys. Isso foi há 15 anos (2004).
Eu só o conhecia do jornal “Província da Bahia”, no qual uma eleição protagonizada pelo editor Fernando Conceição pretendia eleger o “Mala Sem Alça da Bahia”. Eu e Caetano Veloso lideramos a tal eleição, seguido de Ivete Sangalo e Jean Wyllys. No final, o vencedor foi Caetano. Eu fiquei em segundo lugar e Jean em terceiro (veja foto abaixo).
Pois bem: o professor Jean Wyllys estava ministrando aula de “Teoria da Comunicação”, na Faculdade Jorge Amado. Já passava das 21 horas. Eu entrei na sala com as duas estudantes e sentamos ao fundo. A gente tinha saído de um bar. De repente, Jean disse uma bobagem no mundo da filosofia (acho que foi sobre Hegel), e eu retruquei a informação.
Humildemente, ele refletiu sobre as minhas considerações, concordou com a intervenção, e perguntou:
– Você é Marconi de Souza?
– Sim.
Jean fez então mil elogios ao meu trabalho no jornalismo, conquistando a minha simpatia de plano. Quem é que não gosta de elogio? Todavia, o elogio é algo que entra por um ouvido, massageia meu coração, vai ao cérebro e sai pela outra orelha. Afinal, se morar dentro de nós, esse tipo de afago pode transformar a vaidade em loucura.
Ademais, eu já estava ciente naquela época de que a minha obra desmentia todas as teses acadêmicas sobre jornalismo. Recentemente, na Europa, um editor me disse: – “Não há nada igual no jornalismo, antes e depois do que você fez nas páginas do jornal A Tarde”. Mas não consigo me envaidecer com isso, porque não acredito na vida após a morte. Entende?
Bem, naquela noite, Jean Wyllys me contou que pretendia fazer um doutorado no exterior, na área de comunicação. Logo depois, eu o vi num “reality show” da TV Globo. Em seguida, foi eleito deputado federal (2010), bastante combativo, reelegendo-se merecidamente por duas vezes (2014 e 2018), sendo que essa semana renunciou ao cargo por causa das ameaças.
E então agora aparecem uns vagabundos e cachorras – todos covardes, sem coragem sequer para enfrentar uma cascavel, um escorpião ou até uma barata –, e se sentem no direito de vir à rede social criticar e debochar da atitude do deputado. Olha, seus covardes fracos, releiam esse meu texto e ganhem um mínimo de coragem.
Jean vai tocar o projeto do doutorado no exterior, neste momento atrasado do nosso país, para retornar como senador ou, quiçá, presidente da República. Enfim, muito mais do que ele, eu sei o que é acordar para morrer todos os dias, e, embora com autoridade ímpar para julgá-lo, não elogio e nem critico a sua atitude. Apenas respeito. E isso, sem dúvida, é tudo que ele quer e sempre buscou – respeito!
Outra crônica de Marconi Souza Reis: