De Simon Oxenham no BBC Future
Todas as manhãs, Tamara abria seu laptop para acessar um email com um link para uma planilha com oito textos sobre um país do outro lado do mundo, os Estados Unidos, e os prazos de entrega de cada um deles, para dali a algumas horas. Seu trabalho era reescrever cada texto antes disso.
Tamara trabalhava para dois grandes sites baseados na Macedônia do Norte (antiga república da Iugoslávia que declarou independência em 1991 e tem esse nome desde um acordo com a Grécia – que também tem uma região chamada Macedônia – em 2018) e voltados para leitores americanos. Sua função era produzir versões semiplagiadas de artigos originalmente publicados em páginas de extrema-direita dos Estados Unidos, para que seu chefe pudesse direcioná-los a americanos desavisados a milhares de quilômetros de distância.
Falei com Tamara no final de 2018 em um café em Skopje, capital do país. Ao longo de três dias, ela me contou em detalhes sobre os nove meses em que ficou neste emprego. Embora seu ponto de vista se resuma ao de um funcionário, seu relato dá uma boa ideia de como operam estas empresas.
Tamara deseja permanecer anônima, então, para proteger sua identidade, seu nome e os dos indivíduos com quem ela trabalhou foram alterados.
A oferta de emprego
Em um dia de abril de 2017, Tamara recebeu um telefonema. “Sei que você não está fazendo nada, e conheço uma forma de ganhar dinheiro sem sair de casa”, disse seu amigo. “Você é boa em política e tem um inglês bom, então, gostaria de trabalhar em sites de notícias?”
“Eu disse ‘sim, por que não?'”, lembra Tamara. O próximo passo foi participar de uma chamada de vídeo com “Marco”, o homem com a oferta de emprego.
“Quando recebi a ligação, e Marco explicou que tipo de site de notícias era, percebi que trabalharia com notícias falsas”, diz Tamara.
Nas videoconferências seguintes, Marco compartilharia com ela a tela de seu computador e mostraria como publicar artigos em seu site e usar o programa Photoshop para editar imagens.
“Ele era muito tímido e estranho”, diz Tamara. “Talvez porque eu era mais velha e trabalhava para ele, ele se sentia desconfortável”. A jovem estava na faixa dos 25 anos, enquanto Marco mal tinha chegado aos 20.
Tamara só ficaria cara a cara com Marco dois meses depois. Ela costumava percorrer a curta distância de carro até a cidade de Veles. Lá, Marco lhe entregaria um envelope com dinheiro.
Tamara, que se descreve como liberal, ficou horrorizada com o conteúdo dos artigos que teve de reescrever. “Acredito que eles ainda têm artigos piores”, diz ela, ao acessar um site do qual regularmente copiava conteúdo.
Eu observo enquanto ela faz uma busca na internet. “Como você pode ver, eu apenas digitei ‘ataques muçulmanos’, veja só a enorme quantidade de artigos sobre muçulmanos atacando pessoas. Muitos deles, acredito, nem são verdadeiros, foram inventados.”
Um único dos sites que apareceram na busca tinha quase cem páginas de resultados para essa consulta. Uma análise mais detalhada mostrou que os artigos tinham imprecisões gritantes e imagens tiradas de eventos inteiramente diferentes. Tamara foi instruída a simplesmente buscar imagens usando o Google para usar nos artigos que publicava.
Desinformação baseada em fatos reais
No entanto, a experiência de Tamara também mostra as limitações do termo “notícias falsas” e por que a realidade do sites que as publicam é muito mais perniciosa.
Muito do que ela produziu foi desinformação baseada em fatos reais, escrita de forma a provocar medo e raiva nos leitores. No conjunto, as histórias forneciam uma visão falsa e distorcida do mundo, claramente indo ao encontro de preconceitos existentes.
“Aquilo aconteceu, as pessoas existiam, o lugar existia. Então, nunca eram histórias falsas no sentido de fabricar cada detalhe. Eram propaganda e lavagem cerebral”, diz Tamara.
Seu trabalho era reescrever os textos originais americanos para que não fosse possível considerá-los plágio, além de encurtá-los e aumentar as chances de que fossem compartilhados em redes sociais, para gerar receita com anúncios no Google.
Um site de notícias similar, baseado em Veles, com cerca de 1 milhão de seguidores no Facebook, faturava mais de US$ 2 mil (R$ 7,7 mil) por dia, segundo disse seu dono em entrevista à emissora CNN. Marco administrava dois sites, que tinham juntos mais de 2 milhões de seguidores no Facebook, segundo Tamara.
Questionada se esse trabalho e a exposição diária a este tipo de conteúdo a afetou de alguma forma, Tamara descreve sentimentos contraditórios. “O tempo todo em que estava escrevendo essas histórias, pensava: Ai, meu Deus, quem acreditaria nesse tipo de lixo? Quão inculto e burro você tem de ser apenas para ler isso? É difícil ler esses textos. Eles são longos, talvez com mais de mil palavras, e talvez contenham duas frases noticiosas. O restante se resume a insultos”, diz Tamara.
Então, ela diz algo que eu não esperava. “Eu normalmente encurtava esses artigos e simplesmente pulava as partes que eu não queria escrever. Ou introduzia uma informação que não combinava muito”, diz ela rindo. “Por exemplo, se era uma série de artigos atacando muçulmanos, eu ficava furiosa, cortava várias frases e colocava alguma coisa legal no fim que o chefe não notava porque ele não lia todos os artigos o tempo todo. Isso aliviava o peso que sentia”.
Peço um exemplo. Ela diz “algo como ‘mas no fim do dia, somos todos iguais’, uma frase desse tipo no contexto do artigo”.
Ela foi influenciada por este conteúdo? Afinal, alguns estudos sugerem que simplesmente repetir declarações falsas leva as pessoas a acreditar nelas. “Eu estava ciente de que estava escrevendo muitas histórias sobre muçulmanos, sobre como eles querem disseminar sua própria propaganda, querem que todos vivam de acordo com suas regras e coisas assim, e certa vez me peguei pensando algo semelhante. Então, subconscientemente, isso me influenciou de alguma forma, porque ninguém está imune a essas coisas se é constantemente exposto a isso.”
‘Era algo mecânico’
Ela diz não ter mudado de opinião. Mas aconteceu algo inesperado. “Meus pontos de vista não mudaram, minhas crenças não mudaram, mas me peguei sentindo o mesmo medo que eles estavam tentando incutir nos americanos. Enquanto escrevia as histórias, o medo que estava nessas histórias estava em mim também.”
Como Tamara lidava com escrever tanto conteúdo marcado por ódio todos os dias? “Tentava separar minhas próprias crenças das coisas que escrevia. Tentava me distanciar o máximo possível. Pensava que estava apenas escrevendo palavras. Tentava não pensar que escrevia propaganda. Minha opinião é: se as pessoas são estúpidas o suficiente para acreditar nessas histórias, talvez elas mereçam isso como uma forma punição.”
Quando pergunto como ela se distanciava deste trabalho, ela explica: “É muito fácil se você está ciente de que o conteúdo que está escrevendo não é verdadeiro; é apenas uma forma de ganhar dinheiro. Por exemplo, muitas pessoas fazem coisas em seus trabalhos que não gostam de fazer porque o chefe lhes disse para fazer, então foi assim comigo, apenas fazia alguma coisa e não deixava que isso mexesse com a minha personalidade. Era algo mecânico”.
Tamara diz que seus pontos de vista políticos são, na verdade, o oposto dos adotados pelo site. Pergunto se havia alguma chance de essas histórias originais terem sido escritas por pessoas que acreditavam no que escreviam. Sobre isso, ela é inflexível. “Não. Mesmo para criar um artigo como esse, você precisa estar ciente do que está escrevendo. Isso não pode ser fruto de estupidez. Não acho que eles acreditem nas histórias que estão escrevendo, eles sabem que são notícias falsas, sabem que estão produzindo uma mentira. Quão delirante você tem de ser para pensar que isso é real?”
Os sites de Marco estão longe de serem os únicos. Em 2016, apenas uma semana antes da eleição presidencial americana, o site Buzzfeed revelou que mais de 140 “sites de notícias falsas de política” dos Estados Unidos estavam baseados em Veles, uma pequena cidade degradada. Os adolescentes que administram esses sites alegam ganhar milhares de dólares por mês ou mesmo por dia. No entanto, não ganhou uma fortuna. Ela recebia 3 euros (R$ 14) por texto. Isso não é muito para alguns, mas o triplo do que poderia ganhar em um emprego comum.
Há evidências de que essas páginas tiveram um impacto real. Nos três meses finais da corrida presidencial dos Estados Unidos, em 2016, sites de notícias falsos ou “hiperpartidários” ultrapassaram os principais veículos de notícias na lista dos 20 textos sobre a eleição mais compartilhadas no Facebook, de acordo com uma análise do Buzzfeed News.
Quem está por trás destes sites?
Em dezembro de 2017, o Facebook baniu várias páginas de notícias falsas de seu site, incluindo as de Marco. “Estava trabalhando naquele dia. Quando as páginas do Facebook foram fechadas, tentei escrever para ele no [Facebook] Messenger. Sua página [pessoal] também foi desativada, então liguei para ele, que estava muito abalado”. Depois disso, eles não tiveram mais contato, até o ano passado, quando Tamara recebeu um telefonema em que Marco perguntou se ela queria escrever para outro site. Ela recusou.
Quem são os verdadeiros instigadores por trás desses sites? Até recentemente, acreditava-se que os sites de notícias falsos da Macedônia do Norte surgiram espontaneamente pelas mãos de adolescentes locais que buscavam capitalizar a corrida do ouro digital que emergiu da corrida presidencial americana de 2016.
Evidências mais recentes sugerem, no entanto, que pode não ser o caso. De acordo com o Buzzfeed News, a advogada macedônia Trajche Arsov trabalhou com dois importantes parceiros nos Estados Unidos, incluindo Paris Wade, um candidato republicano que recentemente concorreu à Assembleia do Estado de Nevada. O Buzzfeed descobriu que Arsov registrou o domínio do primeiro site de política voltado para americanos de Veles, o USAPoliticsToday.com, em 23 de setembro de 2015.
Isso pode ter gerado uma reação em cadeia na cidade, levando à criação de centenas de sites, incluindo os de Marco. Este relatório contradiz a narrativa dominante de que o surgimento sites de propaganda e notícias falsas que operam a partir da cidade são apenas fruto do trabalho de adolescentes que tentavam lucrar com a histeria do presidente Donald Trump. Isso pode até ser um pouco verdade no fim das contas, mas o fenômeno em Veles não começou desta forma.
A história de Tamara não esclarece muito a questão em torno do possível apoio externo. No entanto, desafia a narrativa de que todos os jovens que trabalham para esses sites prolíficos estavam fazendo para ganhar muito dinheiro. O caso dela mostra que jovens escrevem para estes sites em troca de uma pequena fração dos seus lucros.
Quando me despedi de Tamara, enquanto dirigia pela estrada que levava aos países vizinhos Kosovo, Albânia e Bósnia, fiquei impressionado com uma ironia. Aquela região, os Balcãs, é marcada pelas divisões entre seu povo. Agora, tornou-se um lar para sites que alimentam desarmonia e polarização em lugares a milhares de quilômetros de distância, como os Estados Unidos.