A insatisfação contra o procurador-geral da República, Augusto Aras, é crescente em Brasília. Responsável por dar pareceres, apurar e propor ações contra o presidente Jair Bolsonaro, há queixas entre os integrantes do Ministério Público de que o procurador tem falhado na defesa da democracia. No Supremo Tribunal Federal, 6 dos 10 ministros (uma cadeira está vaga) já cobraram manifestações dele em casos recentes que envolvem o Governo Bolsonaro. Para senadores, ele tem se omitido perante as mentiras que o presidente profere sobre fraudes nas eleições e ante o desastroso combate à pandemia de covid-19 feito pelo Governo federal. Sua recondução ao cargo, que precisa ser aprovada pelo Senado na sabatina que está marcada para a próxima terça, 24, não será tão tranquila como há dois anos, quando teve 68 votos a favor de seu nome, 10 contrários e 1 abstenção. Hoje, ao menos 15 dos 81 senadores já negam a nomeação, mas há uma campanha para buscar novas adesões sendo feita nos bastidores entre os parlamentares.
Dois desses congressistas que se opõem a Aras, Fabiano Contarato (REDE-ES) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), entraram com uma representação para que o Conselho Superior do Ministério Público apure se ele prevaricou. No início do mês, um grupo de procuradores aposentados já havia apresentado queixa semelhante. Na prática, essa será a primeira vez em que o principal responsável por investigar os poderes se tornará alvo de uma série de apurações. “O comportamento desidioso do procurador-geral da República fica evidente não só pelas suas omissões diante das arbitrariedades e crimes do presidente da República, mas também pelas suas ações que contribuíram para o enfraquecimento do regime democrático e do sistema eleitoral e para o agravamento dos impactos da covid-19 no Brasil, além de ter atentado direta e indiretamente contra os esforços de combate à corrupção no país”, justificaram os senadores.
Além de não investigar Bolsonaro pelo nebuloso acordo de compra da vacina Covaxin assinado pelo seu Governo, há outros episódios em que Aras teria se omitido. Como quando, na TV estatal, o presidente acusou sem provas que haveria fraudes no sistema eleitoral. Bolsonaro tentou ainda intimidar o Legislativo com um desfile de tanques da Marinha momentos antes da votação na Câmara sobre o voto eletrônico, que era de seu interesse. Além disso, o mandatário ameaça constantemente o STF, inclusive xingando ministros da corte, e contraria protocolos sanitários básicos contra a covid-19. Nesta semana, a procuradoria-geral liderada por ele foi responsável por uma decisão considerada negacionista, ao se manifestar contrariamente à abertura de uma investigação contra Bolsonaro pela ausência do uso de máscaras em público e por promover aglomerações. A subprocuradora geral, Lindôra Araújo, próxima a Aras, justificou sua decisão afirmando que não há evidências científicas que justifiquem o uso de máscaras contra a covid-19, o que contraria especialistas e entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em entrevista à Folha de S.Paulo nesta quarta, ele negou que tenha sido omisso.
Em linha similar ao pedido de investigação dos senadores, estava a representação assinada por quatro ex-procuradores. “Eis os fatos claríssimos e bastantes. Indicam que o procurador-geral da República Antônio Augusto Brandão de Aras, por si próprio ou por intermédio de pessoa da sua mais estreita confiança, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, vem, sistematicamente, deixando de praticar ou retardando a prática de atos funcionais para favorecer a pessoa do presidente da República ou de pessoas que lhe estão no entorno”, alegaram.
Aras é procurador-geral desde setembro de 2019. Chegou ao cargo por indicação de Bolsonaro e sem o apoio de seus pares, já que não concorreu na eleição interna da Associação Nacional dos Procuradores da República. Entre seus eleitores no Senado estavam políticos alinhados ao presidente, ao Centrão e ao PT. Seu pedido de recondução também quebrou a tradição adotada nos três governos anteriores (Temer, Dilma e Lula) e ignorou a lista tríplice da associação. A última lista foi composta pelos subprocuradores Luiza Frischeisen, Mario Bonsaglia e Nicolado Dino.
Com a atuação questionável, ele tem acumulado alcunhas. Membros do Ministério Público ouvidos reservadamente pelo EL PAÍS disseram que, nos corredores, ele tem sido chamado de prevaricador-geral da República. Entre formadores de opinião, há quem o chame de poste-geral da República, como o batizou o professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo e colunista da Folha de S. Paulo Conrado Hubner Mendes, que foi processado por Aras —a queixa acabou arquivada pela Justiça. Até mesmo a discretíssima ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, criticou o procurador indiretamente. Durante um julgamento cobrou que a Procuradoria-Geral deveria investigar, sim, o presidente, e não esperar a conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito, como Aras queria. “No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”.
A escalada contra o procurador tem recebido uma série de críticas de seus pares. Em ao menos três ocasiões, subprocuradores da República o provocaram a agir ou emitiram notas ressaltando que entre os deveres do Ministério Público estava a “incondicional defesa do regime democrático, com efetivo protagonismo”. Uma das signatárias de todos esses manifestos e representações é a subprocuradora Luiza Frischeisen, que esteve nas duas últimas listas tríplices que foram ignoradas por Bolsonaro. “Quando fazemos essa instigação, nós gostaríamos que ele fosse mais proativo. Mas ele vê o Ministério Público de uma forma diversa. Ele o vê como um fiscalizador de atos a partir de processos que são propostos. Muitos de nós não achamos isso. A atividade criminal é exclusiva e ela precisa ser exercida, afinal ele é o procurador-geral”. Em sua defesa, Aras costuma dizer que tem sua independência funcional garantida, como todos os outros membros da categoria. Em tese, o Supremo Tribunal Federal poderia abrir uma investigação contra o presidente sem a anuência de Aras, mas, além de ser um ato raro, seria mais um elemento de desgaste político entre o Executivo e a corte.
Para especialistas, Aras é mais uma peça na engrenagem bolsonarista na tentativa de enfraquecer os poderes. “O presidente capturou as instituições, em especial o Ministério Público e as Forças Armadas”, diz o coordenador do grupo de advogados Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho. Em sua visão, há inércia por parte do procurador, que deveria ser barrado pelo Senado. “Quando ele toma a decisão de jogar parado, é uma omissão criminosa.” Ainda assim, como o Senado está mais dedicado à CPI da Pandemia do que a outras pautas, não há uma segurança de que um muro será levantado tão prontamente contra o procurador. Afinal, essa paralisia também age contra boa parte dos que são oposição ao presidente e, direta ou indiretamente, acabam se beneficiando de um Ministério Público estático.
Do El País