A cada dia que passa as questões ambientais vêm ocupando mais espaço nos noticiários nacionais e internacionais, colocando no centro das preocupações do século 21 as mudanças climáticas.
As temperaturas de todo o globo estão se elevando a cada ano, a água tem se tornado um recurso mais escasso, a emissão de gases causadores do chamado efeito estufa é crescente, várias espécies estão entrando em extinção e o desmatamento não para de se alastrar pelas florestas mundo afora.
Esses são apenas alguns dos exemplos dos impactos ambientais causados por atividades humanas corriqueiras que ganharam holofotes nos últimos anos e provocaram a ação — ou ao menos a reflexão — de governantes de vários países.
Para além dos crimes ambientais já conhecidos e inseridos na legislação de variados países — que, muitas vezes, a exemplo do Brasil, pouco servem para combater a crise climática que vivemos [1] —, a lavagem de ativos merece especial cuidado nesse contexto.
Atividade lucrativa
Um estudo publicado em abril de 2023 pelo Instituto Igarapé informa que no ano de 2018 o crime ambiental se tornou a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e do contrabando. [2]
Em 2019 o Banco Mundial estimou que os governos perdem entre US$ 6 e US$ 9 bilhões em receitas fiscais todos os anos em razão da exploração ilegal de madeira e ainda que crimes como o tráfico de animais silvestres geram entre US$ 7 e US$ 23 bilhões em rendimentos ilícitos por ano [3].
Em 2022, o Gafi, Grupo de Ação Financeira que tem como objetivo a prevenção à lavagem de dinheiro e o combate ao terrorismo, apresentou estimativa segundo a qual os crimes ambientais geram entre US$ 110 e US$ 281 bilhões em lucros anualmente. [4] Os números falam por si.
A criminalidade tomou conta dos recursos naturais e transformou as economias paralelas relacionadas ao meio ambiente em atividades altamente rentáveis, atraindo, como não poderia deixar de ser, a lavagem de ativos para esse centro de atuação.
O objeto da lavagem passou a ser, então, não somente os valores decorrentes dessas economias, mas, também, os próprios ativos ambientais.
No contexto brasileiro atual, grande parte do dinheiro “sujo” que será objeto de lavagem tem em sua origem, destino ou parte do trajeto os rincões da Amazônia, passando também ao largo da fiscalização estatal.
A pecuária irregular, a extração de madeira e minérios ilegal e o tráfico de animais silvestres são apenas alguns dos exemplos de atividades que geram dinheiro sujo e, portanto, demanda para os agentes responsáveis pela lavagem de dinheiro.
Sobretudo na região amazônica, o que se tem, na realidade, são duas grandes formas de interação dos crimes ambientais com a lavagem de dinheiro.
Grande parte das atividades ilegais ocorridas nessas localidades está sendo usada para lavar o dinheiro de outras origens criminosas, ou seja, valores advindos de corrupção, tráfico de drogas ou de armas são lavados com a mineração, com a pecuária ou mesmo com o desmatamento.
De outro lado, os recursos gerados por negócios ilegais da Amazônia, como extração de madeira e minério irregular e criação de gado em áreas de proteção ambiental também são escoados para a economia formal com aparência de licitude, compondo um verdadeiro ecossistema de crimes, ambientais e não ambientais, que possuem como denominador comum a lavagem de ativos.
Ciclo que se realimenta
Assim, o que se vê é um ciclo que se retroalimenta. Tanto as economias informais da região, que exploram indevidamente os recursos naturais, geram recursos ilícitos dependentes da lavagem de dinheiro para serem introduzidos no mercado formal, como o produto de outros crimes não ambientais lavados nos negócios da Amazônia sustentam e financiam a própria destruição das áreas de preservação locais.
Embora o desmatamento seja o resultado mais visível de todo esse processo, a questão aqui tratada é mais profunda e se desdobra em variadas economias ilegais, desde a grilagem de terras, passando pela pecuária ilegal, até a extração de madeira e minério.
A título de exemplo, a grilagem de terras é comumente feita pela compra ou aluguel de extensas áreas ocupadas ilegalmente com objetivo de criar gado e produzir alimentos. Inicialmente se desmata a floresta da região, para, em seguida, realizar a sua ocupação e posterior comercialização.
Em todo esse processo, vários são os crimes cometidos, ambientais e não ambientais, resultando em produtos ilícitos durante toda a cadeia, com alto risco para a lavagem de dinheiro.
A origem da terra é ocultada, documentos comprobatórios da titularidade da propriedade são fraudados e os lucros decorrentes dessas transações formam o fluxo financeiro da lavagem posteriormente praticada.
Outra atividade muito comum e de comércio abundante na Amazônia é a extração de madeira ilegal. A ilicitude do negócio pode ocorrer tanto na fonte dos recursos extraídos — pela proibição legal de extrair determinado tipo de madeira, no transporte dos produtos ou mesmo durante o seu processamento.
Difícil rastreamento
De difícil rastreamento, a madeira explorada ilegalmente pode ser “lavada” em diversas etapas, com a ajuda de licenças ambientais falsificadas, concessões, licenças de transporte ou declarações alfandegárias fraudulentas. Tudo a escamotear a sua origem ilícita.
A dificultar a detecção dessas condutas ilícitas, muitas vezes a extração e comércio da madeira legal é misturada com aquela proveniente de fontes lícitas, em técnica de lavagem de dinheiro denominada de “mescla”, conhecida no meio investigativo justamente em razão da dificuldade de se separar os ativos lícitos dos ilícitos.
Por sua vez, a extração de minério ilegal (ouro, prata, ferro, diamante, dentre outros) destaca-se não só pelo valor inerente aos metais, que constituem ativos financeiros autônomos, mas também por permitir o cometimento de ilícitos em todas as etapas de seu processamento, desde a extração em terras indígenas ou áreas protegidas, passando pela documentação falsa identificadora de sua origem até, ao final, a própria comercialização dos minérios, que pode se dar de maneira clandestina.
Aqui também pode haver a mescla entre minérios de proveniência lícita com ilícita, o que dificulta a fiscalização e contamina o trabalho regular de garimpeiros e mineradoras.
Pontualmente nessa espécie de atividade o terreno é ainda mais fértil para a prática de lavagem de dinheiro, seja pela prática comum de se usar recursos em espécie ou mesmo o próprio ouro como meio de pagamento ou troca, o que dificulta o rastreio das operações, mas também pela fragilidade no registro da titularidade desse metal nobre, que torna mais fácil encobrir a sua origem.
Um outro grande exemplo de atividade ilícita no meio ambiental que atrai a lavagem de dinheiro é o tráfico de animais silvestres. A região amazônica é local de extração, transporte e comercialização de várias espécies da fauna brasileira que, pelo seu valor, atraem o interesse de muitos compradores.
Os traficantes de animais majoritariamente se utilizam de métodos e rotas usados pelo tráfico de drogas. Além disso, são vários os mecanismos de financiamento e o uso de dinheiro em espécie é muito comum como pagamento.
Convém lembrar, neste ponto, que a lavagem de dinheiro é um fenômeno criminal complexo e que tem como uma de suas principais características justamente a dificuldade em estabelecer qual ou quais condutas são capazes de caracterizar o delito em questão.
Dificuldade na delimitação
Diante da dificuldade na delimitação destes comportamentos, é preciso que a valoração das condutas pretensamente típicas seja feita dentro do contexto em que praticadas tais ações e, sobretudo, à luz do regramento legal e administrativo aplicável, o que, no caso dos crimes ambientais, merece especial atenção, a demandar, como bem pontuou a Procuradora da República Ana Carolina Bragança [5], uma atuação interdisciplinar e integrada entre penalistas e ambientalistas.
Segundo a compreensão da doutrina tradicional o processo de lavagem se estrutura em diversas etapas ou fases, sendo elas classificadas em ocultação, dissimulação e integração. De forma muito abreviada, a fase de ocultação se traduz no movimento inicial de distanciamento do ativo objeto da lavagem de sua origem ilícita, ao passo que a dissimulação são as operações posteriores que contribuem para dificultar o rastreamento de sua origem ilícita, mascarando-a.
Na forma tradicional, a dissimulação se dá por meio da realização de diversas transações financeiras, fracionamento de valores e condutas assemelhadas.
No âmbito dos crimes ambientais a falsificação de licenças próprias, a utilização de interpostas pessoas, a transferência de titularidade do ativo mediante operações de compra e venda simuladas parecem apenas algumas das formas pelas quais se pode dissimular a origem de um bem, dificultando com isso o seu rastreamento.
Na terceira e última fase tem-se o que se convencionou chamar de reintegração, justamente a etapa na qual o ativo de origem espúria é reinserido na economia com aparência de licitude, após ter passado pela ocultação e dissimulação necessárias.
Cumpre destacar, entretanto, que embora reconheça a existência das três fases acima mencionadas, a legislação brasileira optou por criminalizar, no artigo 1º, da Lei nº 9.613/98, com a redação que lhe deu a Lei nº 12.683/12, a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, bastando à caracterização do delito, portanto, a concretização da primeira ou da segunda fase objetivando posterior reinserção na economia lícita, sendo dispensada a sua efetiva ocorrência.
Ciclo de lavagem
De forma sintomática e a revelar a insuficiência da compreensão tradicional do delito para enfrentar a complexa realidade dos crimes ambientais, sobretudo na região amazônica, o estudo elaborado pelo Instituto Igarapé apresenta cinco etapas para o ciclo da lavagem de dinheiro: (1) coleta do dinheiro a ser lavado, (2) diversificação informal, (3) inserção formal, (4) ocultação e (5) integração.
Segundo o instituto, nessas localidades as próprias condições estruturais — socioeconômicas e geográficas – geram incentivos para que os criminosos diversifiquem a coleta do dinheiro por meio de várias espécies de economia ilegal que dependem majoritariamente de meios de troca difíceis de serem rastreados, a exemplo do ouro e do dinheiro em espécie (1).
Como nem todos os recursos provenientes da atividade criminosa são lavados no sistema formal, dá-se início a um processo de movimentação de fluxos ilegais para dentro da economia informal, isto é, a diversificação informal (2).
Muitos desses recursos são usados para custear as próprias despesas de todo o processo da economia ilícita, que podem chegar a 30% do total arrecadado. O valor restante, de aproximadamente 70% do montante original, é inserido na economia formal (3).
Na etapa de ocultação, há o encobrimento e a transformação desses recursos, muitas vezes pelo superfaturamento de operações realizadas com empresas existentes nessas economias, por companhias de fachada, ou até mesmo por meio da aquisição de ativos virtuais (4).
A fase final, por sua vez, permite a integração dos fluxos ilícitos para que os agentes criminosos possam receber os valores de modo aparentemente lícito, exemplificando-se tal fase com a compra de imóveis ou com o comércio internacional (5). [6]
Longe de constituir um diagnóstico final e definitivo sobre um tema sabidamente complexo e em constante mudança, as reflexões aqui propostas têm como objetivo estimular o debate e jogar luz sobre alguns dos muitos problemas existentes entre o Direito Ambiental e a lavagem de dinheiro, destacando-se, sobretudo, a necessidade de um exame cada vez mais interdisciplinar da questão, sob pena de não ser o ordenamento jurídico capaz de oferecer respostas à altura do fenômeno ora em discussão.
*Este artigo foi elaborado com base em exposições em evento promovido pelo Grupo de Estudos sobre Lavagem de Dinheiro da USP no dia 28 de novembro de 2023 sobre Crimes ambientais e Lavagem de Dinheiro, sob a coordenação de Pierpaolo Bottini, tendo como participantes Helena Regina Lobo da Costa, Ana Carolina Bragança, Melina Risso e Fernando Sampaio.
PUBLICADO NO CONJUR