Do Observatório da Imprensa – Não é incomum que importantes movimentos sociais sejam ignorados pelo jornalismo estabelecido quando ainda estão no começo e são incapazes de mobilizar grande quantidade de pessoas. Em geral, atribui-se esse fenômeno à resistência ideológica da parte de editores e proprietários contra as reivindicações dos movimentos. Mas quase sempre o motivo para esse equívoco é muito mais prosaico.
Diariamente jornalistas têm de peneirar milhares de assuntos que podem estar na sua pauta para ficar com apenas algumas dezenas que efetivamente vão ser trabalhados para exibição ao público. Tal escolha é um dos momentos decisivos do trabalho jornalístico e errar aí pode ter consequências muito graves para o veículo e para sua audiência.
O conservadorismo (não necessariamente o ideológico, mas o da rotina) faz com que muitos jornalistas passem por cima de acontecimentos que estão fora de seu radar habitual. Por isso, preferem manter o conhecido na pauta a arriscar um investimento no que é muito novo e ainda está nebuloso.
Sob holofotes
Provavelmente foi isso que motivou a lerdeza com que muitos meios de comunicação em quase todos os países do mundo, a começar nos EUA, deram atenção às manifestações do “Occupy Wall Street”, que desde 17 de setembro ocorrem nas redondezas do centro financeiro americano, em Nova York, e, de duas semanas para cá, em dezenas de cidades do país.
No começo, só umas dezenas de pessoas, quase todas brancas, jovens e de classe média, participaram, o que ajuda a explicar (mas não justificar) o desinteresse da mídia. Mesmo com pequena participação, o movimento trazia, para qualquer observador arguto, germens de expansão.
A insatisfação dos americanos com sua situação econômica é enorme há muito tempo e surpreendia que ela ainda não tivesse se convertido em explosões públicas de descontentamento. Especialmente entre estratos sociais desacostumados com a penúria, como os brancos de classe média.
Que “Occupy Wall Street” poderia crescer bastante deveria ter sido logo percebido por qualquer jornalista sensível. Mas seu potencial só foi mesmo descoberto em 1º de outubro, graças à falta de profissionalismo dos policiais encarregados de acompanhar passeata que incluía a ponte do Brooklyn. Eles interromperam a marcha pacífica com violência, detiveram 700 pessoas e criaram, com isso, um fato que nenhum jornalista poderia ignorar. Dessa forma, o movimento, que estava empacado – por ser mal formulado politicamente, carecer de ideário, objetivos e palavras de ordem atraentes e ser pobremente organizado –, se espraiou e ganhou a simpatia de muita gente, até do presidente Barack Obama (embora por meio de palavreado pouco explícito).
Não é possível afirmar com segurança se “Occupy Wall Street” vai ou não crescer a ponto de ter alguma influência sobre a sociedade e a política americanas nas próximas semanas ou meses. Embora muita gente fale que ele pode ser o contraponto liberal ao muito bem sucedido “Tea Party” dos ultraconservadores, um abismo os separa em termos de capacidade logística, lógica política e poder de marketing.
O jornalismo, que agora está com o movimento em sua pauta, passará a acompanhá-lo mais de perto, com as vantagens e desvantagens que isso implica para qualquer um que é colocado sob os holofotes da mídia.
Há quem ache que ele não precisa do jornalismo estabelecido para nada e que sua força decorre das redes sociais e das novas tecnologias, nas quais continuará a beber para se expandir. Pode ser, mas por enquanto esses meios de comunicação não parecem ter sido muito eficientes para de fato construir fatos relevantes.
Nota dissonante
Quase 50 anos atrás, também sem apoio da mídia da época e quando tudo que havia para se comunicar interpessoalmente eram telefones fixos, telegramas e cartas, além do contato físico, um grupo de negros completamente à margem dos privilégios da sociedade conseguiu em dois meses de preparos colocar 200 mil pessoas na capital dos EUA.
A “Marcha sobre Washington por Empregos e Liberdade”, que culminou com o discurso de Martin Luther King Jr. em 28 de agosto de 1963, no entanto, tinha propósitos muito bem definidos: combatia injustiças imensas e prementes que afrontavam 10% da população americana (“Occupy Wall Street” diz falar por 99%, mas é difícil que a maioria dos que ele pensa representar realmente o tenha como porta-voz), contava com inspiradores do calibre de Luther King e pessoal dedicado à organização que tinha motivação e capacidade para fazer as coisas funcionarem, tudo que por enquanto falta aos jovens anti-Wall Street.
O debate sobre os temas de que o movimento trata parece, de fato, ter tomado conta da internet, o que – inegavelmente – é algo importante porque coloca temas vitais na agenda de muita gente que até então só usava seus blogs, Twitter e Facebook para tratar de banalidades ou de si próprios.
Mas será que isso vai ser suficiente para que ele venha a ter influência minimamente comparável à da Marcha de 1963, por exemplo, que ajudou de modo indiscutível a aprovar a Lei dos Direitos Civis de 1964?
A resposta a esta pergunta será decisiva para compreender melhor do que são realmente capazes em termos de atuação política e social as novas tecnologias de comunicação.
O jornalismo estabelecido deveria estar muito atento a tudo isso, até por interesse próprio. Não há dúvida de que quando ele se engajou na campanha pelos direitos civis nos anos 1960, sua força ajudou a impulsioná-la (como ocorreria depois em diversas outras situações, como os protestos para acabar com a guerra no Vietnã ou, no Brasil, a campanha das “Diretas-Já”).
Mas, nesta segunda década do século 21, será ainda preciso que ele se alie a um movimento social (ou pelo menos o cubra adequadamente) para que este tenha repercussão e êxito? Muitos acham que não e que “Occupy Wall Street” ajudará a demonstrar a sua tese. Como sempre, o futuro dirá.
Mas o fato por enquanto é que, além de ter chegado atrasada a esse movimento, a mídia estabelecida ainda está longe de cobri-lo bem e de ser um fator importante para a disseminação das suas ideias (ainda que elas sejam mal e pouco definidas).
Na imprensa de países importantes, somente a da Espanha, por meio de El País, vem fazendo um bom trabalho (talvez por já estar escolada pelos meses de ativismo dos “indignados” em Madri e outras cidades).
No Brasil, a cobertura de “Occupy Wall Street” tem sido muito acanhada. Mais uma vez, a nota dissonante positiva, pelo menos até domingo (9/10), veio do caderno “Aliás”, de O Estado de S. Paulo, que dedicou duas páginas para entrevistas e artigos inteligentes e profundos sobre o fenômeno.
Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista